The night was heavy and the air was alive
Há certos momentos na vida em que o tempo parece passar de um jeito diferente. Esse congelamento do relógio, mudança no véu da realidade, é descrito até na literatura. Está, por exemplo, nos olhos de Anna Karenina antes que ela decida se entregar à paixão desenfreada. Também está na percepção de Marlow ao adentrar o coração das trevas, no Congo. Tudo bem que dei dois exemplos que se referem a decisões e destinos amaldiçoados, mas não deixo de sentir que o efeito é parecido.
O ano era 2002-2003, não tenho certeza absoluta. Era domingo de manhã. Meus pais colocaram a TV em um canal local para esperar por um programa; o canal era tão modesto que não havia programação fixa, de modo que o que tinha para ver, enquanto o tal programa (no qual figuraria um primo meu) não passava, era uma tela fixa com uma música ao fundo. Uma música, não - um álbum, de uma cantora de voz bonita que eu não conhecia.
O programa do meu primo não veio, e o álbum se repetiu várias vezes, pelo menos umas cinco, talvez seis. Só que o relógio, esse marcou duas horas de espera, não mais. Acontece que o álbum era o belíssimo Echoes, de Maggie Reilly, que tem mais de 40 minutos. Tenho certeza de que se repetiu muito mais de duas vezes. Não me perguntem como, mas aconteceu.
Também aconteceu a música.
O modo como eu, tão menina, entendi cada palavra cantada nunca me pareceu normal. Eu era boa no inglês, mas não para entender tudo de primeira. Havia uma moça e um rapaz, pego no meio de uma multidão, na noite de um sábado passado. Ele levou seis tiros, de um homem em fuga, e ela não conseguia chegar até ele. E, depois que as árvores cantaram uma canção de mágoa e dor, às 4 da manhã, a moça pediu que o amado morto viesse conversar com ela.
Não me atrevi a tentar traduzir a frase carried away by a moonlight shadow. Era algo bonito demais para ser traduzido e virar "levado por uma sombra da lua". O que seria uma sombra na lua, essa lua personificada que leva alguém embora? Que mundo é este onde as árvores sussurram e cantam? Quem matou o homem que aquela mulher amava tanto, e por quê? Eu fiquei fascinada. Eu precisava saber e, se eu não sabia, responderia a questão por mim mesma.
Foi assim que eu recebi minha história, que até hoje tento escrever, vinte anos depois. E já não importa muito o que fazer com ela - publicá-la, ou seja, levá-la a um público, ou não - porque esse dia, estranho como foi, era um sinal de que minha vida estava para mudar.
E mudou mesmo.
Um dia, eu ainda conto por aqui como.
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